segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O quanto Judas e Pilatos temos sido?

A globalização da indiferença

A definição do papa Francisco descreve o naufrágio de Lampedusa

por Claudio Bernabucci — publicado 14/10/2013 03:36



O que aconteceu em Lampedusa não é digno da Europa”, declarou Cecilia Malmstrom, sueca, responsável pela Comissão Europeia para Assuntos Internos, ao aterrissar na ilha siciliana. Seis dias depois que o mar, a poucos metros da costa, engoliu 350 náufragos africanos provenientes da Líbia, a lúgubre conta dos cadáveres recuperados supera o número de 300. Muitas as crianças e as mulheres, algumas delas grávidas. O último e penosíssimo descobrimento dos mergulhadores da Marinha foi o corpo de uma criança ainda ligada pelo cordão umbilical ao ventre da mãe. Quem entra naquele barco transformado em tumba marinha não volta como antes à vida de todos os dias, porque o abismo do horror mexe indelevelmente nas profundezas da alma.
Antes de serem religiosamente alinhados em caixões marrons e brancos no enorme hangar da Aeronáutica, os corpos são acumulados no cais do porto, em modernos sacos plásticos verdes e azuis, mas que, nesta circunstância, lembram tristemente vulgares sacos de lixo. Seres descartáveis. Nós e eles, separados, raças distintas, outros destinos, aqui no coração do Mediterrâneo como em qualquer outro lugar do mundo. Em São Paulo como em Nova York.

Os sobreviventes estão em condições miseráveis, literalmente amontoados no centro de hospitalidade para clandestinos, perenemente subdimensionado pelas trágicas emergências. Chove e está começando o frio na Sicília. Muitos dormem debaixo de uma folha de plástico ou madeira, ao ar livre, como na mais miserável favela do Terceiro Mundo.

É nesse clima de desespero que a delegação de mais alto nível da União Europeia, guiada pelo presidente Manuel Barroso, pisa na ilha na quarta-feira 9. As palavras da comissária sueca e o pedido de perdão aos sobreviventes do premier italiano Enrico Letta, ajoelhado em frente aos caixões brancos das crianças, não bastam para aplacar os ânimos dos lampedusianos. Nesta ilha paradisíaca que com frequência se transforma em inferno, mais próxima da África do que da Sicília, eles se sentem abandonados desde sempre. Os políticos de Bruxelas ou de Roma realizam frequentes visitas e fazem bonitas declarações à imprensa, que quase nunca são seguidas pelos fatos.
Quem se defronta com a tragédia são sempre os mesmos: pescadores e habitantes de Lampedusa. Desta vez, o vibrante protesto dos insulanos parece interpretar fielmente o sentimento daquela parte da Europa ainda digna, quando gritam “Vergonha, assassinos!” na cara de Barroso, Malmstrom, Letta e Alfano, o vice-premier italiano que acumula a pasta do Interior. Apossaram-se da reação indignada do papa Francisco, que, profético, já em julho deste ano falou da “globalização da indiferença” em sua visita à ilha.
A bem da verdade, é preciso reconhecer que a pior tragédia da imigração clandestina no Mediterrâneo se consumou por um misto de fatalidade e ignorância, além das responsabilidades políticas fundamentais. A dinâmica do naufrágio permanece incerta, mas parece que a poucas centenas de metros da maravilhosa Praia dos Coelhos, na costa de Lampedusa, o motor do velho barco parou. Era ainda noite e, para chamar a atenção dos pescadores que navegavam a distância, alguns incautos a bordo teriam posto fogo em suas roupas. Daí o incêndio que provocou o pânico entre os 500 clandestinos e fez virar o barco superlotado. Em poucos instantes desceu ao fundo de 50 metros e se transformou em tumba para centenas de infelizes.
Os primeiros a prestar socorro aos 155 clandestinos que conseguiram se manter à tona foram um barco privado e outros de pesca, mas não faltaram acesas polêmicas entre italianos depois da tragédia: os náufragos contaram que antes do incêndio se aproximou um barco aparentemente para prestar socorro. Os pescadores a bordo, depois de constatar que os náufragos eram clandestinos, mudaram a rota e sumiram na escuridão. Faltavam poucos metros para a salvação, mas a indiferença vingou mais uma vez.
Facilitada, neste caso, pela perversa lei italiana sobre imigração. Inspirada pela direita xenófoba e racista nos anos do governo Berlusconi e que leva o nome do então presidente da Câmara Fianfranco Fini e de quem à época liderava a Liga Norte, Umberto Bossi. Por ela, a clandestinidade é crime e, por consequência, persegue penalmente também aqueles que prestam socorro aos “criminosos”.
Fortalecido pela vitória contra Berlusconi, Enrico Letta promete a eliminação da lei. O Senado respondeu, no mesmo dia 9 de outubro: a Comissão de Justiça votou pela abolição do delito de clandestinidade. Mas o problema não é só italiano, evidentemente. A Itália, nos últimos anos, por causa de seus graves problemas de emprego desta lei que ameaça e repele, não tem sido mais o destino dos clandestinos, para tornar-se país de trânsito para as mais prósperas regiões do Norte.
As guerras civis e as gravíssimas turbulências políticas que afligem Síria, Somália, Eritreia, Líbia e Egito estão provocando uma onda gigante, e irresistível, de prófugos que procuram amparo em países ricos e pacíficos. Não obstante a proximidade e a facilidade de acesso às suas fronteiras mediterrâneas, a Europa conservadora das últimas décadas, concebida como uma fortaleza a ser defendida, não criou uma política migratória única. Os Estados continuam titulares de políticas e ações muitas vezes contrastantes. Tudo indica que à Itália e à Espanha foi delegado implicitamente o papel de cão de guarda meridional, com base na filosofia de que é melhor um afogado longe dos próprios olhos do que um refugiado em casa.

A imensa tragédia de Lampedusa, que tem provocado comoção incomum entre os europeus honrados, parece representar um turning point para as políticas migratórias do continente. Os burocratas de Bruxelas e vários governos estão anunciando mudanças radicais nas escolhas da política, adequada, pelo menos em sentido mais humanitário. Resta ver, nos próximos meses, se a inversão de rota será cumprida ou se tudo mudará para se manter sempre igual.

 http://www.cartacapital.com.br/revista/770/a-globalizacao-da-indiferenca-6775.html

Para saber mais, leia:

Lei Bossi-Fini (Berlusconi): http://www.cartacapital.com.br/revista/770/esta-lei-e-um-crime-6210.html 

http://hypescience.com/pessoas-religiosas-agem-por-compaixao-menos-que-ateus-e-agnosticos/

PS:

Estes textos vieram esclarecer minha surpresa e indignação diante desta tragédia. Somente corpos inocentes são capazes de levar à reflexão a multidão apática e egoísta.
A Itália, berço do Catolicismo, berço do Império Romano, que bebeu suas fontes na Cultura Helênica, fonte da Filosofia e de grandes matématicos. Platão, Aristóteles, Sócrates... Este povo que enche as praças do Vaticano, que reza e se ajoelha. Piedoso?
Acho que nosso maior problema é confundir riqueza com civilização. Povos ricos como o povo italiano escreveram as piores páginas da história da humanidade. Ex? São tantos: Inglaterra, França, Alemanha, Portugal, Espanha...
Como é que eu poderia esperar compaixão de um povo que dizimou milhões de indígenas, que comprou e vendeu escravos, que queimou milhares na fogueira da inquisição, que assistiu embevecida, e inebriada leões devorando homens, mulheres e crianças no Coliseu? 
Voltar no tempo... esse é o segredo para se compreender o incompreensível. 
E de repente, um calafrio percorreu minha coluna...
Quantas dessas atitudes temos presenciado dia após dia, e continuamos inebriados, ignorando e justificando?
Quantos sofrem ao nosso lado, nossos irmãos, sejam de sangue, ou de ideais? E fingimos não ver, porque naquele momento, exatamente naquele momento, era inconveniente? Quantos Judas e Pilatos temos sido?

Um comentário:

Ygbere - Abaara disse...

Texto impactante e triste, afinal não devemos ser nem Judas nem Pilatos, devemos sim ver no outro a extensão de nos mesmos e desta forma ter respeito pela vida humana.

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