sábado, 21 de abril de 2012

A arte secreta dos Dervixes Giradores: hipótese esotérica


Giselle Guilhon Antunes Camargo (UFSC)  
GT:Estudos da Performance 
Palavras-chave:Sama – Dervixes Mevlevi – Ordem Mevlevi – Ordem  Kubravi  





Girar no Sama não é simplesmente girar em torno de  si mesmo em círculos. Significa conquistar  a  sensação  de  equilíbrio  interno  e  externo,  do Céu  com  a Terra. Esse  é  o equilíbrio da vida em perfeita comunhão com a Criação [...]. De que adianta fazer giros maravilhosos em torno de um pé se minha vida afunda num caos? [...] Devemos saber que  esse  é um  caminho  sufi,  que nos  confronta  com o nosso próprio desequilíbrio. O caminho  sufi  conduz  –  através  da  aceitação  do  trabalho  e  da  prática  constante  dos exercícios – a uma abertura para a realização. A tarefa tem a ver com renúncia. Milhares 
de tarefas orlam esse caminho e todas elas, juntas, conduzem à domesticação dos egos (nafs). 

O parágrafo acima – extraído do livro Sama: a Dança-Giro dos Dervixes ou A Arte do Equilíbrio da  Vida,  dos  alemães  Ingrid  e Kurt  Bauer  –  sintetiza  a  experiência  pessoal  dos  autores  no  processo 
iniciático do Sama. O casal, que viajou de motohome para a Turquia em busca dos dervixes giradores ou 
Mevlevi, acabou tendo muito mais do que um simples contato com o Sufismo. A maneira vívida como a 
experiência é narrada – ao mesmo tempo em que um método prático de ensino vai sendo revelado – situa 
o texto entre os mais autênticos e didáticos relatos sufis contemporâneos. A  grande  contribuição  do  livro  reside,  todavia,  no  campo  da  pré-expressividade:  nele encontramos os princípios e as  técnicas  (mentais-) corporais extracotidianas que norteiam a práxis – o giro  –  dos  dervixes  Mevlevi. 

O  Sama,  como  toda  arte  ou  prática  tradicional,  é  ensinado progressivamente, em graus sucessivos, através de passos que podem ser seguidos. É por essa razão que se diz que esse é um caminho que pessoas inexperientes também podem trilhar.  

Lembremos, contudo, que dervixes – sejam eles Mevlevi ou de qualquer outra escola sufi – não 
são, por definição, atores. (Muito embora alguns atores sejam dervixes!). Eles são, antes, pessoas comuns 
que desempenham no mundo os mais diversos papéis  e profissões e que escolheram o Sufismo,  a via 
mística do Islã, como um caminho para o seu desenvolvimento espiritual. Do mesmo modo, a prática do 
Sama não tem por objetivo primeiro a (re-) presentação cênica – ainda que alguns praticantes de Sama 
tenham se tornado “dervixes giradores” profissionais, apresentando o ritual dançante, artisticamente, em 
teatros e salas de concerto. 

O Sama é uma dentre as várias técnicas mentais-corporais utilizadas no Sufismo com o objetivo de abrir a mente e o coração do indivíduo para o seu potencial maior. Tanto quanto o zikr (repetição dos nomes de Deus), o Sama é considerado “um meio de liberar a energia espiritual”, ou seja, de “permitir que  a  parcela  de  luz  divina  que  jaz  adormecida  no místico  desperte,  unindo-se  à  sua  semelhante,  no Cosmos”: Cada vez que o coração aspira ao Trono, o Trono aspira ao coração, de sorte que eles  se  encontram.  Cada  pedra  preciosa  (ou  seja,  cada  um  dos  elementos  do homem  de  luz)  que  está  em  ti,  provoca  em  ti  um  estado  místico  ou  uma visualização no Céu que lhe corresponde [...]. Cada vez que ascende de ti uma luz, desce em direção a ti uma luz, e cada vez que teus raios de luz ascendem, descem, igualmente, em tua direção, raios de luz que lhes correspondem. [...] Se essas  energias  tiverem  ambas,  a  mesma  qualidade,  encontrar-se-ão  a  meio caminho (entre o Céu e a Terra) [...]. Mas quando a substância de luz que habita em ti crescer [...].   

A hermenêutica espiritual que rege o princípio do semelhante atrair o semelhante – amplamente 
discutida pelo filósofo Henry Corbin, em seu L’homme de lumière dans le Soufisme Iranien – foi fixada 
entre os séculos XII e XIII pelo místico persa Najmuddin Kubra e continuada por seu discípulo direto 
Alâoddawileh  Semnânî.  Partindo  do  pressuposto  de  que  as  partes  que  constituem  o  ser  humano  são consideradas  fragmentos de  suas homólogas  cósmicas, Kubra desenvolveu uma  fisiologia  esotérica ou fisiologia dos órgãos sutis da percepção (lataif), na qual cada órgão ou centro sutil está associado a uma 
metafísica da luz que se reflete no Infinito:  Em cada parte purificada do homem, se reflete a contraparte que lhe é homogênea, pois as  coisas  só  podem  ser  vistas  e  reconhecidas  pelas  coisas  que  lhes  são  semelhantes. Quando  a  natureza  esotérica  que  designa  os  gênios  e  as  faculdades  se  torna  pura, 
contempla-se nela o que lhe é homólogo no Macrocosmo. O mesmo é verdadeiro para a alma  (naf),  o  intelecto  (‘aql),  o  coração  (qalb),  o  espírito  (ruh),  a  trans-consciência (sirr),  o  arcano  ou  centro  intuicional  (khafi)  –  o  lugar  interior  onde  se  revelam  os atributos divinos que embriagam [...] – até a consciência profunda (haqq).
   
A hipótese de que houve influência da Ordem Kubravi ou Kubrawiyya sobre a Ordem Mevlevi 
ou Ordem dos Dervixes Giradores – quer através do contato de Rumi (fundador da escola Mevlevi) com 
o mestre Shams de Tabriz (discípulo de Baba Kamal, aluno de Kubra), quer através dos ensinamentos de 
seu próprio pai, Bahauddin Walad (que, igualmente, recebera ensinamentos de Kubra) – é sustentada por 
Michel Random,  em  seu  livro Rumi,  la Connaissance  et  le Secret. Conforme Random  é no Adâb altarîqa, um  curto  tratado  sobre  iniciação,  que Kubra  expõe  as  regras  da Ordem Kubravi. Essas  regras assemelham-se  às  prescrições  essenciais  da  Ordem Mevlevi  ou Mawlawyyia:  os membros  da  ordem devem usar o manto correspondente à tariqat (escola), sentar-se sobre tapetes de oração e praticar tanto a repetição dos nomes divinos (zikr) quanto a dança mística (Sama).  

A  influência  de  Kubra  sobre  os  Mevlevi  vai,  entretanto,  muito  além  das  regras  de comportamento (adab) e técnicas de meditação (zikr e Sama) prescritas pelos Sheikhs do Silsila (corrente de transmissão) do Sufismo. Kubra dedicou-se a estudar e a descrever o fenômeno luminoso, fazendo das percepções visionárias um método  experimental:  conforme  a  coloração das  luzes vistas pelos próprios discípulos em estado meditativo, ou que, emanando destes, fossem percebidas pelo mestre, poder-se-ia saber em que grau de elevação espiritual eles  se encontravam. Embora essa metafísica da  luz não  seja abordada diretamente pela maioria dos estudiosos de Rumi, a ênfase que os Mevlevi dão à ativação do coração  sutil  (qalb)  –  órgão  fundamental  da  percepção  supra-sensível  –  demonstra  que  esse conhecimento iniciático não apenas continuou sendo transmitido através dos séculos, como é, ainda hoje, um dos pontos centrais do esoterismo Mevlevi.

Se, como dissera Kubra, “em cada parte purificada do homem, reflete-se a contraparte que lhe é 
homogênea”, então, seguindo essa mesma lógica, o coração (qalb) purificado buscará, ele também, sua 
homóloga  cósmica.  “Cada  vez  que  o  coração  aspirar  ao  Trono,  o  Trono  aspirará  ao  coração”,  diz  o mestre iraniano. Quando essa atração ocorre – do “Céu celeste” em direção ao “céu do coração” ou “céu 
da alma” – ,o coração (qalb) passa a ser chamado de “Espírito Santo”:  O Espírito Santo, no homem, é um órgão sutil celeste. Quando lhe é concedida a força concentrada da energia espiritual, ele alcança o Céu e o Céu se imerge nele. Ou, antes, o Céu e o Espírito são uma só e mesma coisa. [...] Ou então podemos dizer: existem, no ser humano, pedras preciosas de toda espécie de mina, e tudo que aspiram é encontrar sua própria mina original e homogênea a elas.  

Eis a essência da intuição de Kubra: se as partes que constituem o ser humano são fragmentos de suas  homólogas  cósmicas;  se  uma  substância  só  vê  e  conhece  a  substância  que  lhe  é  semelhante  (do mesmo modo que só pode ser vista e conhecida pela sua semelhante); e, se todo semelhante busca unir-se  ao seu semelhante; então, a “pedra preciosa”, metáfora do fragmento cósmico no ser humano, buscará ela 
mesma unir-se à sua “mina original”, sendo, portanto, capaz de ver e reconhecer apenas a “mina” que foi 
sua origem e para a qual todo seu querer e nostalgia se dirigem.  

Esta  lei  –  da  atração  e  do  reconhecimento  mútuos  do  semelhante  pelo  semelhante  –, exemplificada por Kubra das mais diversas maneiras, baseia-se, essencialmente, na comunicação entre o humano e o Divino, o buscador e o Buscado, o contemplador e o Contemplado, o amante e o Amado:  Há  luzes que  sobem  e  luzes que descem. As  luzes que  sobem  são  aquelas do coração; aquelas que descem  são as do Trono. O  ser criatural é o véu entre o Trono e o coração; quando o véu é rompido e no coração se abre uma porta para o Trono, o  semelhante se  lança em direção ao  seu  semelhante. A  luz  sobe em direção a luz, e à luz desce em direção à luz, e é luz sobre luz.
   
Essa  breve  introdução  ao  esoterismo  de  Kubra  –  trabalho  quase  arqueológico  –  conecta,  eu 
insisto,  o  esoterismo Mevlevi  às  suas  mais  profundas  raízes.  E  são,  precisamente,  essas  raízes  que 
fornecem  os  elementos  necessários  para  a  compreensão  dos  princípios  que  regem  a  prática  do  Sama. 

Alguns  desses  princípios  foram  fixados  por  Ingrid  e  Kurt  Bauer  no  livro  Sama:  a  Dança-Giro  dos 
Dervixes ou A Arte do Equilíbrio da Vida e podem ser expressos nos seguintes termos: o Sama é “a arte 
de abrir as asas internas”; “um processo transformador intensivo entre os dois pólos: Céu e Terra”; seu 
sentido  e  objetivo  são,  através  do  “equilíbrio  do  interior  com  o  exterior”,  “conduzir  o  indivíduo  à 
experiência da energia divina”.  Mas  o  que  significa,  exatamente,  “abrir  as  asas  internas”,  “alquimizar  os  dois  pólos,  Céu  e Terra”, “equilibrar o interior com o exterior”? (Percebem o quanto a hermenêutica Kubravi é capaz de decifrar  essas metáforas?)  

Se  conectarmos  o  esoterismo  de Kubra  ao  esoterismo  de  Rumi,  podemos, facilmente, deduzir que “abrir as asas internas” significa “liberar a energia espiritual”, ou seja, “permitir que  a  parcela  de  luz  divina  que  jaz  adormecida  no místico  desperte,  unindo-se  à  sua  semelhante,  no Cosmos”. 
                                                       
Notas 

1 In: BAUER, Ingrid & Kurt. Sema der Wirbeltanz der Derwische – Die kunst der lebensbalance. Neuhausen 
am Rheinfall: Urania Verlags AG, 1993, p. 43-44. (Tradução: Noris Lindeke) 
2 O nível que se ocupa de como tornar a energia do ator ou bailarino cenicamente viva, isto é, de como o ator pode 
tornar-se uma presença que atrai  imediatamente a atenção do espectador é o nível pré-expressivo. Esse  substrato 
pré-expressivo está como que implícito no nível da expressão, podendo ser percebido pelo espectador. Durante o 
processo de  treinamento, o ator pode  trabalhar no nível pré-expressivo, como  se, nessa  fase, o objetivo principal 
fosse a energia, a presença, o bios de suas ações e não o seu significado: “O nível pré-expressivo, pensado dessa 
maneira  é,  portanto,  um  nível  operativo,  não  um  nível  que  pode  ser  separado  da  expressão, mas  uma  categoria 
  5 
                                                                                                                                                                                         
pragmática,  uma  práxis,  cujo  objetivo,  durante  o  processo,  é  fortalecer  o  bios  cênico  do  [bailarino]  ou  ator.” 
(BARBA, E.  A arte secreta do ator: Dicionário de Antropologia teatral. São Paulo: Ed. Hucitec, 1995, p. 188)  
3 KUBRA, Najmuddin    apud CORBIN, H. L’homme de  lumière dans  le Soufism  Iranien. Saint-Vincent-sur-
Jabron: Éditions Présence, 1971, p. 84. (Tradução minha) 
4 Ver CORBIN, H., op. cit. 
5  Nascido  em  1145,  em  Khwarizm,  e  morto  em  1221,  em  Samarcanda,  durante  a  invasão  de  Gengis  Khan, 
Najmuddin Kubra foi um dos grandes iniciados de seu tempo, com discípulos vindos de toda a Ásia Central. Dentre 
eles, muitos se tornaram célebres, a exemplo de Bahauddin Walad, pai de Rumi, e Baba Kamal, que é citado como 
um dos mestres de Shams de Tabriz, o Sheikh mais importante de Rumi. Além de Najm Râzi, autor de um tratado 
místico em Persa, e de Fariduddin Attar.  
6 HAMADÂNÎ, ‘Alî apud CORBIN, H., op. cit., p. 80. (Tradução minha) 
7 RANDOM, Michel. Rumi, la connaissance et le secret. Paris: Éditions Dervy, 1996, p. 60. 
8 Ibidem, p. 81.  
9 Trecho do Alcorão. In: CORBIN, H., op. cit., p. 83. (Tradução minha) 
10 Ver BAUER, I. & K., op. cit., p. 27; 35; 45-46.  


Bibliografia 
BAUER, Ingrid & Kurt. Sema der Wirbeltanz der Derwische – Die Kunst der Lebensbalance. Neuhausen am  
Rheinfall: Urania Verlags AG, 1993. (Tradução: Noris Lindeke) 
BARBA, E. A Arte Secreta do Ator: Dicionário de Antropologia teatral. São Paulo: Ed. Hucitec, 1995. 
CORBIN, H. L’Homme deLumière dans le Soufism Iranien. Saint-Vincent-sur-Jabron: Éditions Présence, 1971. 

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