quarta-feira, 9 de março de 2011

Questionamento sobre Lei Maria da Penha mostra intolerância e preconceito


Em entrevista à Agência Brasil, a ministra Iriny Lopes disse que há avanços a se comemorar no Dia Internacional da Mulher (8), mas sobra preocupação no que diz respeito à consolidação dos direitos alcançados. Ela apontou como uma ameaça real às conquistas os questionamentos de parlamentares e juízes quanto à constitucionalidade da Lei Maria da Penha, que pune a violência cometida dentro de casa e motivada por questões de gênero
Ontem (8) foi o Dia Internacional da Mulher e, para a ministra da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, Iriny Lopes, há avanços para se comemorar, mas, também, muita preocupação com a consolidação dos direitos alcançados. Uma ameaça real às conquistas dos últimos tempos, na sua opinião, são os questionamentos da constitucionalidade da Lei Maria da Penha que, hoje, se reproduzem em várias comarcas e tribunais.
A lei que garante punição para a violência cometida dentro de casa, motivada pela questão de gênero, chegou a ser classificada como “diabólica” por um juiz. Além disso, o artigo que garante que a vítima não será coagida a retirar a denúncia vem sendo questionado nos tribunais superiores. Para Iriny Lopes, há “intolerância e preconceito”.
A ministra assumiu como primeira tarefa de sua gestão estabelecer um diálogo com os magistrados para sensibilizá-los da importância da aplicação da lei tal como foi aprovada. Segundo ela, os juízes precisam aproximar-se mais das questões da população. “A alma da Lei Maria da Penha é que a mulher não seja coagida”, disse a ministra, em entrevista à Agência Brasil. Iriny também defendeu a formação de um banco de dados confiável para medir a dimensão da violência contra as mulheres.
Agência Brasil – A Lei Maria da Penha foi aprovada e sancionada no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, mas, até hoje, há problemas com sua aplicação efetiva. Até a constitucionalidade da lei que protege as mulheres em relação à violência cometida dentro de casa vem sendo discutida no meio judiciário. Um juiz da cidade mineira de Sete Lagoas chegou a chamar a lei de “diabólica”. Como convencer as pessoas da necessidade de aplicação dessa lei?
Iriny Lopes – Primeiramente, seria prudente, seria bom para o Brasil que o Poder Judiciário se aproximasse um pouco mais do que são os anseios da população. A Lei Maria da Penha foi considerada pelas Nações Unidas como uma das três melhores legislações do mundo de proteção à mulher e instrumento eficaz e rigoroso contra a violência doméstica. Uma pesquisa recente mostra que 63% dos brasileiros conhecem e apoiam a Lei Maria da Penha. É um índice altíssimo. Nós poderíamos arriscar a dizer que é a lei brasileira mais popular de toda a história. O que ocorre no interior do Judiciário reflete o que vai também na sociedade. Em alguns casos, eu não generalizo, trata-se de intolerância e preconceito.
ABr – Mas não cabe ao juiz, desembargador ou ministro prezar pela aplicação da lei?
Iriny – Ao examinar um processo, aquela leitura é feita de forma contaminada pelo preconceito e pela cultura de que é natural a violência. Trata-se da naturalização da violência praticada contra a mulher e alguns magistrados já vão imbuídos dessa conduta.
ABr – Como é que o Executivo pode tratar esse assunto sem que isso caracterize invasão de Poderes ou atribuições?
Iriny – [Em] Alguns casos, é discussão sobre doutrina e é nessa ótica que queremos tratar e já estamos dialogando com o Judiciário.
ABr – O artigo da lei que não permite que a queixa seja retirada pela vítima causou discussão no Congresso [Nacional] e ainda é um ponto que muitos não aceitam. [Alguns parlamentares] Alegam que, diferentemente de outras leis, a vítima, nesse caso, a mulher, não pode se arrepender da denúncia. Como superar essa discussão?
Iriny – Posso falar [disso] com uma certa tranquilidade porque fui relatora da Lei Maria da Penha quando ela estava sendo apreciada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. O ponto contestado é o Artigo 16, que trata da ação ser ou não condicionável. A lei é clara. A mulher pode retirar, sim, a queixa, mas perante a um juiz, em audiência. Então, não há a alegada inconstitucionalidade. Existem coisas, como esse questionamento, que nos deixam perplexos. Mas a perplexidade não vai nos tirar a capacidade de ação.
ABr – Não dá para abrir mão desse ponto para manter as penalidades previstas na lei?
Iriny – Esse ponto é indispensável. As varas especializadas tanto na Justiça como na promotoria são importantes. As delegacias, núcleos e casas-abrigo são também importantes, a qualificação dos profissionais, servidores públicos que vão receber as mulheres [tudo isso] é também importante. A obrigatoriedade de uma central de dados é importante, mas o mais importante de tudo, a alma da Lei Maria da Penha, é que a mulher não seja coagida. Esse artigo a protege para que ela não seja constrangida a retirar a ação.
ABr – A senhora esperava esse embate com setores do Judiciário?
Iriny – Não se trata disso. Há questões que temos que enfrentar de forma decisiva e estou me esforçando nesse diálogo. Houve uma decisão recente no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que nós, do governo, consideramos muito ruim. A decisão dá um prazo à mulher para ver se ela vai mesmo manter a ação. O agressor, ao saber disso, vai agir. A intimidação da vítima, nesse caso, é líquida e certa.
ABr – A senhora considera que essa decisão tem um caráter discriminatório?
Iriny – Sim. Quando se tem uma briga entre dois homens, por um motivo qualquer, um deles registra queixa e isso evolui para um processo, nunca se pergunta a ele se ele quer retirar a queixa ou não. Muito menos é dado a ele prazo para confirmar essa denúncia. Por que essa distinção em relação à mulher? Por que a Justiça tem que perguntar isso a uma mulher? Ela é vítima de agressão, ela apresentou denúncia. A denúncia foi objeto de inquérito, que originou uma denúncia do Ministério Público para, depois, virar um processo. Nesse tempo todo, se ela tivesse se arrependido, ela poderia ter ido lá e falado: “Doutor, quero retirar a queixa”. Não tem porque o Judiciário perguntar isso a ela.
ABr – Outro questionamento é em relação à especificidade da própria lei que protege as mulheres. Como driblar isso?
Iriny – Já me perguntaram, ao vivo, em uma entrevista: por que não há, então, uma lei especial para homens? Eu simplesmente respondi: porque não precisa. Os homens não são agredidos porque são homens. Eles são agredidos em brigas por ciúme, por bebida, por qualquer outra coisa, mas não por serem homens. Já a agressão de gênero ocorre só contra a mulher. É por isso que há a necessidade da lei. A motivação da agressão por gênero não consegue ser atingida pela legislação comum.
ABr – Que características a senhora enxerga na chamada “violência de gênero”? Como caracterizar esse tipo de crime?
Iriny – É uma violência que vem em uma curva crescente. Começa com uma agressão psicológica, do tipo: ‘Você está parecendo uma p… com essa saia’, ‘Não tinha uma outra roupa não?’, ‘Esse batom está escandaloso’, ‘Nossa, tenho até vergonha de ficar perto de você’. Depois passa para ameaça. O parceiro diz: ‘Se você for trabalhar com essa roupa, não precisa mais voltar porque você não entra mais aqui’. Depois passa para uma sacudida, depois um tapa, depois uma surra, depois o corte de dinheiro. Não passa um recurso no caso de haver um só provedor, depois cárcere privado, deixa a mulher trancada e diz que só pode sair com ele. Se sair sem ele, quando voltar, mais surra, até chegar à morte, que pode acontecer de forma premeditada ou mesmo em consequência das sucessivas violências. Vai batendo, batendo, até a mulher não resistir. É por isso que esse tipo de crime tem que ter uma legislação específica que não podemos chamar nem de especial. Trata-se de uma legislação especializada.
ABr – A senhora considera que a lei já teve um efeito de diminuir esse tipo de violência?
Iriny – Nós podemos medir a Lei Maria da Penha e sua importância para as mulheres do país pelo Disque 180, o nosso disque-denúncia. O número de denúncias ampliou-se enormemente. Tem muita gente dizendo que a violência aumentou. Eu não acho isso. O que aumentou foi a confiabilidade das mulheres. Elas sabem que podem denunciar porque serão protegidas e seus agressores serão exemplarmente punidos. É isso, as mulheres brasileiras acreditaram que poderão deixar de ser vítimas de violência porque, agora, têm uma lei que as amparam.
ABr – O que pode acontecer caso essa lei seja considerada inconstitucional?
Iriny – Se as mulheres forem frustradas no acesso ao seu direito, sustentado na Lei Maria da Penha, nós teremos um retrocesso e corremos o risco de ter aumento dos homicídios, que já não são poucos.
ABr – Como está o cenário de homicídios de mulheres provocados pela violência doméstica?
Iriny – Nossos dados estão muito atrasados. Há pouco, foi divulgado o Mapa da Violência, mas ainda não se têm mecanismos confiáveis para distinguir se as mortes são originadas pela violência doméstica ou o crime comum. Não dá para saber a quantidade de mortes que ocorrem motivadas por violência de gênero. Os dados que as polícias enviam são dados misturados.
ABr – Como resolver essa carência de dados que poderiam alimentar, inclusive, outras políticas públicas voltadas para a redução da violência?
Iriny – Nós vamos trabalhar num novo banco de dados no Brasil. É preciso que se tenha um formulário diferenciado. Na hora do óbito, a própria polícia tem que poder registrar que foi uma briga com o marido, com o namorado, com o pai ou com o irmão. Estamos ainda discutindo como será esse formulário. Ele ainda não existe, mas a própria Lei Maria da Penha determina a criação de um banco de dados no país.
ABr – Quando as polícias poderão contar com esse novo formulário?
Iriny – Estou falando em formulário porque foi a primeira forma pensada para a formação desse banco de dados, mas podemos utilizar outro mecanismo. Nesta semana, eu conversei sobre esse assunto com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e estamos criando um grupo de trabalho para discutir a forma de constituir esse banco de dados e alimentá-lo com dados confiáveis. Esse banco de dados tem que nos dar a informação, por exemplo, do número de homicídios de mulheres no país, quais mortes estão relacionadas à violência doméstica e à intolerância de gênero.
Entrevista realizada por Luciana Lima, da Agência Brasil, publicada pelo EcoDebate, 09/03/2011


Valores machistas e ‘inconsciente androcêntrico’ ainda predominam nas relações

A relutância de juízes e delegados de polícia em aplicar a Lei Maria da Penha é uma forma explícita de tentar manter a desigualdade entre homens e mulheres, afirma a socióloga Patricia Castro Mattos. Ela acredita que, além das formas de violência descritas na lei, existem outras formas de “violência simbólica” que perpetuam padrões de comportamento e os desequilíbrios entre os homens e as mulheres.
A eleição da primeira presidenta do Brasil aponta para o questionamento da “ordem natural dos sexos”. “Há uma mudança simbólica relevante na eleição de Dilma [Rousseff] que não pode ser ignorada”, revela. Entretanto, segundo ela, não se pode ser excessivamente otimista e afirmar que o Brasil é menos machista por ter eleito uma mulher para a Presidência da República.
A intelectual coordena o Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ), em Minas Gerais, e é professora do Departamento de Ciências Sociais.
Em sua opinião, ainda estão presentes no país “padrões de percepção, avaliação e comportamento androcêntrico [supervalorização do ponto de vista masculino], machista e sexista”.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista que a socióloga concedeu à Agência Brasil por email.
Agência Brasil: É possível dizer que a relação entre gêneros tende a ser mais equilibrada ou mais favorável às mulheres de classe social mais alta?
Patrícia Mattos: O fato de as mulheres entrarem no mercado de trabalho, seu maior acesso à instrução formal e sua consequente independência financeira tendem a gerar fricções que podem questionar a “ordem natural dos sexos”, gerando, assim, a possibilidade de mudanças no regime de gêneros. E, nesse caso, as mulheres das classes média e alta, devido ao seu posicionamento social, são privilegiadas em relação às mulheres da classe baixa e tendem a ter relações mais equilibradas com os homens. Isso não significa afirmar, de modo algum, que os padrões de percepção, avaliação e comportamento androcêntrico, machista e sexista não estejam presentes nas relações e práticas sociais e institucionais dessas mulheres privilegiadas. Tenho notado em minhas pesquisas com mulheres de classe média que aquelas que conseguiram uma colocação bem-sucedida no mercado de trabalho, em muitos casos, tendem a apagar as desigualdades de gênero e ressaltar toda a ideologia meritocrática, ainda que elas relatem sofrer, das mais variadas maneiras, “violência simbólica”, que é aquela forma de violência “suave”, que não é percebida enquanto tal pelas suas próprias vítimas. Já com as mulheres de classe baixa, as violências manifestas, abertas, efetivas são mais evidentes e expostas. Com isso, não estou dizendo que as mulheres das classes média e alta não sofram violências físicas, abusos e explorações, mas que esse tipo de violência, nesse estrato social, não tem a mesma visibilidade que para a classe baixa. Ainda que o “inconsciente androcêntrico” esteja presente nas relações e práticas sociais e institucionais de homens e mulheres em geral, de forma transclassista, creio que na classe baixa o sexismo e o machismo sejam encontrados de maneira mais caricata, mais bruta do que nas classes média e alta.
ABr: Como se perpetuam, nas diferentes classes, os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres?
Patrícia: A velha e tradicional divisão sexual do trabalho, na qual os homens são exclusivamente responsáveis pelo ganha-pão e as mulheres pelo trabalho doméstico e cuidado com os filhos não condiz mais com a realidade vivida por homens e mulheres no Brasil. No entanto, esse “inconsciente androcêntrico” presente em nosso imaginário social, que coloca as mulheres como depositárias do afeto e do sentimento e os homens da razão, é atualizado constantemente em nossas práticas e relações sociais e institucionais. Recordo-me de uma propaganda veiculada em canais de TV aberta há alguns anos, na qual uma garotinha, falando com seu pai ao celular, tenta, apesar da distância entre eles, matar a saudade aproximando o celular de todas as coisas que reproduzem o barulho da casa (o tic-tac do relógio, a gravação do ursinho de pelúcia etc.). A mensagem da propaganda era: “Fique mais perto de seu pai, pois, como se sabe, o pai está sempre longe”. A representação simbólica que está posta nessa propaganda reproduz a ideia de que pai longe é coisa natural e esperada. O mesmo pode ser percebido quando voltamos o nosso olhar para as brincadeiras de crianças. Certa vez, observando a interação entre meninos e meninas numa festa infantil, na qual as crianças se entretinham jogando videogame, pude notar uma divisão clara entre os papéis assumidos pelas crianças. Enquanto os meninos jogavam, as meninas, além de ficar olhando os meninos competirem, contentavam-se em servi-los com refrigerantes. Quando eu lhes perguntei por que as meninas não participavam da brincadeira, eles me responderam que eram elas que desejavam espontaneamente assumir esse papel. Surpreendeu-me constatar que, a despeito da tenra idade e das transformações vividas pela geração dos pais dessas crianças, elas ainda reproduzem em suas brincadeiras o imaginário androcêntrico e sexista denunciado há 60 anos por Simone Beauvoir.
ABr: No texto “A dor e o estigma da puta pobre” a senhora aponta que é comum na história de vida das mulheres entrevistadas um tipo de socialização disruptiva, marcado, entre outras coisas, pela ausência paterna (e agravada com situações de abuso sexual). Há um número crescente de famílias sem pais, que impacto isso pode ter na formação das meninas e dos meninos?
Patrícia: Quando eu ressaltei a ausência paterna e a questão do abuso sexual como marcas desse tipo de socialização disruptivo [com rupturas], procurei demonstrar como a socialização familiar das prostitutas entrevistadas não lhes havia dado, quando crianças, a sensação de se “saber amada e protegida” e, mais ainda, não lhes possibilitou o aprendizado pré-reflexivo, a partir dos exemplos dos pais, de uma “economia emocional”. Não se pode, no entanto, essencializar a figura paterna sob o risco de se reproduzir os papéis sociais tipicamente masculino e feminino e ratificar, pura e simplesmente, a velha “ordem natural dos sexos”. Nesse sentido, as novas configurações de família – chefiadas unicamente por mulheres, por casais homossexuais etc., ou aquelas nas quais as mulheres é que exercem o papel de domínio – podem ser bem-vindas e propiciar o questionamento dos esquemas de percepção, de avaliação e de comportamento androcêntrico, sexista e machista.
ABr: Há magistrados que consideram a Lei Maria da Penha inconstitucional e em algumas delegacias evita-se fazer o registro de violência como agressão do cônjuge. Como a senhora vê a relutância de alguns juízes e delegados em aplicar a lei?
Patrícia: Uma das formas mais eficazes de manutenção da dominação social injusta, como bem denunciaram todos os movimentos de minorias, com destaque para o movimento feminista, é quando os dominantes recorrem ao universalismo, à igualdade de direito para reproduzir e legitimar a desigualdade de fato. É com base nesse universalismo – no texto constitucional que diz que todos são iguais perante à lei – que juízes questionam a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, por ela garantir um tratamento especial e diferenciado às mulheres vítimas de violências físicas e todo tipo de abuso.
ABr: No artigo “A mulher moderna numa sociedade desigual”, a senhora assinala que “as mulheres não parecem ter descoberto uma forma expressiva de vivenciar sua condição (…) mas, sim, parecem ter tomado o modelo masculino como modelo a ser seguido”. É correto dizer que o que é atribuído ao universo masculino ainda é mais valorizado socialmente?
Patrícia: Não há dúvida de que a essencialização dos gêneros, que está por trás da divisão social dos papéis feminino e masculino, é baseada num sistema de classificação/desclassificação social que coloca as características tidas como tipicamente masculinas como a supremacia da razão sobre os sentimentos e as emoções, tidas como tipicamente femininas, como sendo socialmente mais valorizadas. É bem verdade que a entrada das mulheres no mercado de trabalho competitivo, a possibilidade de as mulheres ocuparem cargos de poder e prestígio social, ainda que se possa perceber nitidamente a permanência da desigualdade entre os gêneros quando analisamos a colocação das mulheres no mercado de trabalho, abre o campo para uma luta simbólica a favor das mulheres que pode permitir a desconstrução da essencialização dos gêneros. No entanto, como toda a estrutura do capitalismo está baseada na ideologia meritocrática e no consequente apagamento das relações assimétricas entre os gêneros, o grande desafio das mulheres é descobrir uma forma expressiva de vivenciar sua condição não tomando o modelo masculino como modelo a ser seguido.
ABr: O Brasil que, agora, tem uma presidenta é um país menos machista? É possível assinalar alguma mudança em pouco mais de 60 dias de poder?
Patrícia: Essa é a questão mais espinhosa para ser respondida. O risco de toda análise conjuntural é sempre incorrer na simplificação da compreensão sobre o mundo social. O grande desafio da teoria crítica é mostrar a complexidade do mundo social e questionar todo tipo de pensamento, visão, ideologia que o conceba como algo dado, como inevitável e que sirva para perpetuar e legitimar a dominação social injusta. Uma das formas mais eficazes de perpetuação da dominação é ver mudança onde existe permanência e conservação. Sem dúvida, a eleição da presidenta aponta para o questionamento da “ordem natural dos sexos”, na qual o espaço público e as posições de poder são reservados aos homens. Há, portanto, uma mudança simbólica relevante na eleição de Dilma que não pode ser ignorada ao se vislumbrar “outros possíveis”, isto é, outras formas de ser e atuar no mundo para as mulheres. No entanto, o legado que o pensamento crítico nos deixa é a tarefa de sopesar a importância da eleição de uma mulher para o cargo de maior poder político. Não podemos correr o risco de ser excessivamente otimistas e deterministas ao afirmarmos que o Brasil é menos machista por ter eleito uma mulher para a Presidência da República, sem levar em conta a força da “violência simbólica”, que perpetua a dominação social injusta, ao ressaltar a mudança, valendo-se da generalização de histórias de vida singulares.
Entrevista realizada por Gilberto Costa, da Agência Brasil, publicada pelo EcoDebate, 09/03/2011
http://www.ecodebate.com.br/2011/03/09/valores-machistas-e-inconsciente-androcentrico-ainda-predominam-nas-relacoes/

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